O dia do milagre

por Zevi Ghivelder
A par do extraordinário triunfo do movimento sionista, a fundação do Estado de Israel, 60 anos atrás, contém intrigantes elementos que inclusive podem ser apontados como sobrenaturais. Do ponto de vista político, jamais uma nação foi criada por votos de outros países. Sob a ótica histórica, a jornada percorrida pelo povo judeu corresponde a uma sucessão de milagres. Depois de dois mil anos de injustiças, perseguições, massacres e assassinatos em massa, este povo sobrevive forte, vibrante e, há seis décadas, soberano em sua pátria.
Em 1948, na mesma hora em que os judeus declararam sua independência, foram atacados por exércitos inimigos. Venceram uma guerra feroz, combatida em três frentes. Na verdade, faz sentido o que Ben Gurion gostava de repetir: "só é realista o judeu que acredita em milagres". O ano de 1948, no poente da primeira metade do século vinte, começou com um acontecimento traumático: o assassinato de Gandhi, na Índia, no dia 30 de janeiro. No cenário econômico, foi o ano da implementação do Plano Marshall destinado à recuperação da Europa destruída pela guerra. Na literatura, destacava-se nos Estados Unidos o judeu Norman Mailer com seu romance, "Os Nus e os Mortos", enquanto o Prêmio Nobel nessa modalidade cabia ao poeta anti-semita T.S. Eliot. Na França, Sartre lançava "As Mãos Sujas" e o "Oscar" de melhor filme pertencia ao diretor e também protagonista, Laurence Olivier, com "Hamlet". A Inglaterra, livre da dor de cabeça da Palestina, era sede dos primeiros Jogos Olímpicos do pós-guerra e já havia pressionado, até a exaustão, o Presidente Truman para que os Estados Unidos não apoiassem e nem reconhecessem a existência de uma pátria para os judeus. Entretanto, de todos os fatos grandes e pequenos daquele ano de 1948, o mais significativo, o mais abrangente, o mais revolucionário e o de maior repercussão internacional foi a criação do Estado de Israel, no dia 14 de maio.
Não foi uma data marcada com antecedência e surpreendeu judeus e não-judeus em todo o mundo. No dia 12 de maio, três dias antes do término do mandato britânico, Ben Gurion convocou o Conselho Nacional, formado por treze pessoas, para uma reunião na sede da Agência Judaica em Tel Aviv. As primeiras notícias eram terríveis. A Legião Árabe começara a invasão do território demarcado pela partilha com colunas de tanques e mil e quinhentos homens, forçando a rendição do assentamento judeu de Kfar Etzion e assassinando a sangue-frio dezenas de prisioneiros.
Apesar do pessimismo reinante, Ben Gurion era o único que procurava conservar a calma, embora sua fisionomia se mantivesse sombria como nunca. Coube a Golda Meyerson (depois Meir) fazer o relato do segundo encontro que mantivera na véspera com o Rei Abdullah da Transjordânia. Em uma reunião anterior, o monarca chegara a admitir a criação de um estado judeu, mas, desta vez, sua posição era irredutível: se houvesse independência, haveria guerra. Contudo, para os membros do Conselho, mais do que o receio do conflito, permeava o medo de que a ação sionista não viesse a ser apoiada pelos Estados Unidos, posição que tornaria inviável a independência.
Enquanto isso, na Casa Branca, o Presidente Truman e seus principais assessores discutiam os passos que deveriam ser tomados caso os judeus insistissem em declarar sua independência no dia 15, último dia da presença britânica no território da Palestina. Um dos participantes da reunião era um jovem chamado Clark Clifford, assessor do presidente para assuntos domésticos. Por iniciativa própria, ele havia preparado uma declaração oficial de apoio às pretensões judaicas na Palestina. Foi o juiz da Suprema Corte americana, o judeu Felix Frankfuter, quem havia aconselhado Eliahu Epstein (depois Elat), diretor da Agência Judaica em Washington, a manter contato com Clifford, cujo suporte à causa sionista era conhecido do magistrado. Naquela reunião, Clifford mantinha a esperança da concordância de Truman com seus pontos de vista, embora as fronteiras de um possível e futuro estado judaico não estivessem definidas e nem seu nome oficial estivesse escolhido. George Marshall, Secretário de Estado e vitorioso general na Segunda Guerra Mundial, era um dos homens mais admirados do país e se opunha com firmeza ao reconhecimento de um estado judeu. O Secretário de Defesa, James Forrestal, argumentou que os Estados Unidos não deveriam antagonizar os países árabes. Clifford rebateu, dizendo que o estabelecimento de uma nova nação no Oriente Médio, guiada por princípios democráticos, concorreria para estabilizar aquela região além de servir ao Partido Democrata no tocante à influência judaica com vistas às eleições presidenciais, que aconteceriam em novembro. Marshall explodiu: "Senhor Presidente, eu pensei que esta reunião fosse para resolver um intrincado problema de política internacional e nem sei o que o Clifford está fazendo aqui!" Truman respondeu fleumático: "Ele está aqui porque eu o convoquei". Anos mais tarde, Marshall escreveu em suas memórias: "Eu disse ao presidente que as sugestões de Clifford estavam equivocadas e que, caso acatadas, teriam um efeito contrário ao desejado e seria afetada a dignidade da Casa Branca. Acrescentei que se o presidente concordasse com Clifford, eu talvez nem viesse a votar nele nas próximas eleições".
Na reunião, em Tel Aviv, Moshe Shertok (depois Sharret) comunicou ao Conselho que a França e a Inglaterra haviam proposto um armistício. Aceitá-lo significaria abrir mão da criação de um estado soberano. Não aceitar seus termos poderia eqüivaler a um suicídio. Dois assessores do Conselho, Igal Yadin e Israel Galili, foram convocados para apresentar um panorama da situação militar judaica, que era mais do que frágil. Ben Gurion foi enfático: "A catástrofe de Etzion não me abala. Eu já esperava derrotas e receio que teremos que enfrentar dificuldades ainda maiores. Tudo será decidido quando conseguirmos derrotar a maior parte da Legião Árabe. É pelas armas que resolveremos este problema". Parecia um absurdo, mas a determinação de Ben Gurion empolgou o Conselho.
A proposta de armistício foi colocada em votação: seis contra, quatro a favor e três abstenções. A pátria judaica seria criada por uma diferença de apenas dois votos. Após um breve intervalo, sucedeu-se uma série de cruciais indagações. Como proclamar a soberania? Que nome dar ao novo país? Como seria redigida a declaração de independência? Alguns propuseram Estado Judeu, outros simplesmente Sion. Finalmente, um consenso: o nome seria Israel. Seguiu-se, então, outro ruidoso debate sobre a questão das fronteiras. Como inseri-las na declaração? Mais uma vez prevaleceram as palavras de Ben Gurion: "Leiam a declaração de independência dos Estados Unidos que não contém qualquer alusão a fronteiras territoriais. Não somos obrigados a precisar com exatidão os limites do estado. Os árabes estão-nos atacando. Se conseguirmos derrotá-los, a Galiléia ocidental e os dois lados da estrada para Jerusalém serão parte de nosso país". Nova votação, agora sobre a definição das fronteiras: cinco votos contra, quatro a favor e quatro abstenções. A reunião terminou de madrugada, ficando decidido que um pequeno grupo, presidido por Sharret, se encarregaria do texto da declaração de independência.
Ben Gurion passou a manhã do dia 13 de maio reunido com o Estado Maior. A cidade de Safed tinha-se rendido à Haganá. Depois de Kfar Etzion, outras localidades judaicas estavam sob severo ataque. No sul havia uma forte ofensiva do exército egípcio. Na sede das Nações Unidas, em Lake Success, a confusão era total. Em Washington, o líder Chaim Weizmann enviou uma carta ao presidente Truman solicitando o reconhecimento do Estado de Israel, embora sua independência nem tivesse sido proclamada.
Na Casa Branca, depois da reunião com Marshall, o presidente agradeceu a Clifford por suas sugestões e nada mais disse. O jovem assessor retornou ao seu gabinete convencido de que havia sido derrotado. Entretanto, sem que ele soubesse, acabara de ganhar um precioso aliado, Robert Lovett, Sub-Secretário de Estado, que antes era contra a causa sionista, mas que se deixara convencer pela argumentação de Clifford. Na mesma manhã em que Ben Gurion se inteirava da débil situação militar, Lovett convocou sua equipe. Todos estavam a favor do reconhecimento de um estado judeu. Isto fez com que Marshall voltasse atrás, inclusive impressionado pela carta de Weizmann, na qual ele dizia esperar que "a mais antiga democracia" se colocasse ao lado "da mais nova democracia". Truman pediu que Marshall e Lovett fizessem contato com Chaim Weizmann, mas o Departamento de Estado objetou, argumentando que Weizmann não detinha um cargo oficial na Agência Judaica e era cidadão britânico. Como conseqüência, Eliahu Epstein assumiu a posição de representante do novo país junto à Casa Branca e Clifford recebeu autorização para contatá-lo em caráter formal.
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